CRÔNICA DO DOMINGO E DO SÁBADO-ADEUS ÀS ILUSÕES
Era inverno, o frio era tão intenso que o homem sentia lhe doer todos os ossos. E à noitinha teve acessos de tosse que debelou tomando uma lapada de Alcatrão de São João da Barra (safra 1970, que guardava a sete chaves dentro de uma velha petisqueira). E, para calibrar os nervos, tomou também uma lapada de conhaque Castelo (outra relíquia, safra de 1960). Depois foi se deitar numa rede branquinha já toda puída que com os balanços dava aqueles rangidos que ele achava já fazer parte da trilha sonora da sua vida. Cobriu bem os pés com uma velha manta e ligou bem baixinho o radinho de pilha Mitsubichi. Não sabia nem qual era a estação e nem o pograma, devido ao chiado do próprio rádio e aos rangidos da rede. Ele alisava o radinho como quem alisa um gato de estimação.
A chuva caia lá fora, incessante, era uma dessas chuvas enervantes mas que fazem parte do show da natureza. Esse tipo de chuva fazia com que recordasse chuvas de outros tempos, de um tempo em que ele não ficava estirado numa rede quando chovia. Riu e pensou: "há templo de plantar e tempo de colher". O tempo da rebeldia e dos desafios passara. Sentiu que a coriza começava, tirou um lenço de papel de uma caixinha e enxugou o nariz. Lembrou Tito Madi: "A noite está fria, chove lá fora...; também lembrou Jorge Ben antes de se tornar Benjor: "Chove chuva, chove sem parar...", mas lembrou-se também de um tango que gostava muito: "Esta tarde vi llover e vi gente correr y no estabas tu...". No entanto, quando ouvia a zoada da chuva lembrava o tango de Piazolla do filme "Chuva sobre Santiago", foi quando tomou conhecimento desse músico e compositor.Ficava emocionado e triste lembrando o filme: o golpe que derubou Allende. Adorava a música de Astor Piazolla, às vezes chorava ao ouvir "Adiós Nonino" e "Libertango".
Era um homem desiludido, completamente desiludido em relação aos ideais de juventude. Não dos ideais em si, mas com os que lideravam esses ideais. Dissera adeus às ilusões da juventude por causa dos judas que traíram os sonhos de se construir uma sociedade nova como preconzara o Che. Fora um rude golpe admitir que a carne era fraca e que, simplesmente, dentre os seus líderes não existia a tal têmpera socialista; que aqueles líderes em que tanto acreditara foram susceptíveis ao fascínio das mordomias e vantagens. Doeu vê-los cuspindo no prato que comeram e comendo no prato que cuspiram. Dava graças a Deus que os líderes de verdade tivessem partido antes desse revertério imoral. A última pá de terra havia sido a implosão do velho partidão, liquidado friamente pelos socialistas de resultados, hoje robustos direitistas, capachos do neoliberalismo.
Depois veio a porrada abissal de ver socialistas justificando a mutreta dos tais recursos não contabilizados. Mas o que mais o envergonhava era a mudança de postura, o afastamento das bases, a alergia às greves, o menosprezo pelos movimentos estudantis etc e coisa e tal. Repugnava-o o novo discurso e as justificativas esfarrapadas dos socialistas de resultados. O fascínio deles pela ribalta do poder os transformava em palhaços sem graça e meros vermes. Sim, havia ainda alguns combatentes do socialismo, resistindo, mas dentro do sistema, numa resistência inócua que só referendava a prevalência do socialismo de resultados.
Ali, ouvindo o som da chuva que caía, o rangido da rede e o chiado do rádio, ele recordava os seus sonhos de adolescente, a sua fé inabalável no socialismo, os frêmitos provocados pela leitura do livro de Jonh Reed, "Os dez dias que abalaram o mundo", do romance "A Mãe", de Gorki, da descoberta dos barbudos lutando na Sierra Maestra, das figuras do Che, Fidel, Camilo..., da vitória da Revolução cubana, do livro de Sartre, "Furacão sobre Cuba", da vitória dos cubanos na Baía dos Porcos quando rechaçaram a invasão patrocinada pela CIA a mando de Kennedy;lembrou da vitóra de Arraes em 1962, da luta de Julião e das Ligas Camponesas e do seu slogan, Reforma Agrária na Jri ou na Marra; lembrou Prestes, Gregório, Capistrano... E Brizola comandando o levante para dar posse a Jango. Depois lembrou do golpe de 64. Fora a primeira decepção porque a esquerda não resitira, não fizera como na espanha onde os esquerdistas enfrentaram as tropas de Franco. A esquerda brasileira entregara os pontos sem dar um mísero tiro. Preferira a contestação democrática. E tome prisão, perseguição, censura, torturas e assassinatos. Um inferno.
Mas o homem continuara firme com suas convicções, fazendo o que podia contra o regime militar. Vibrara com a resistência democrática, com a mobilização popular, com a luta pela anistia; se emocionou com a volta dos exilados, participou das lutas pelas "Diretas Já!". Mesmo triste apoiou a eleição de Tancredo pelo Colégio Eleitoral, chorou com a morte dele, aceitou resignado a posse de Sarney; animou-se com a primeira eleição direta, pós golpe, para presidente, mas amargou a vitória de Collor. Vibrou com o Fora Collor, nutriu certa esperança com Itamar, mas entristeceu muito com os governos entreguistas de FHC. Finalmente, sem ter medo de ser feliz, se emocionou com a vitória de Lula.
Teve várias alegrias com o governo Lula, se bem que tenha estranhado o fato dele ter prosseguido ipsis literis com a política econômica neoliberal de FHC. Mas pelo menos melhorara a vida do povo mais pobre, e foi sensível e generoso para com o Nordeste,além de ter feito uma política internacional independente. No entanto, a esquerda fora com muita sede ao pote do poder, relegando suas bandeiras de ética e austeridade a segundo plano. E desertaram das bases, os líderes trocaram de identidade política e ideológica, feriram de morte os sonhos da juventude. Jogaram sua história na lata do lixo quando se empolgaram com cargos, tapetes do poder e referendaram os tais recursos não contabilizados.
Ora cochilava e ora acordava, na rede, sempre divagando, lamentando o quanto fora ingênuo em não questionar os líderes de pés de barro. como demorou a cair a sua ficha. Agora era tarde e inês era morta. Admitia que ficara apenas a saudade do passado. Concordava até que aqelas formas românticas de socialismo não se adaptavam mais aos dias de hoje. Mas entendia que havia novas tribunas, novas formas de luta, novos caminhos e veredas como as lutas sociais, pela cidadania, justiça social, meio ambiente, nas organizações sociais e civis. Sim, as lutas pela cidadania eram um direito inalienável, inegociável, irreversível. Nesse ponto as ilusões não estava perdidas. Era nesse tipo de luta que iria se engajar, numa luta sem líderes falsos, numa luta que o importante era a causa em si e não os lideres.
O homem se levantou, tomou mais uma dose de Castelo, tossiu, cuspiu e fez a careta de praxe. Quando voltava para a rede viu um velho poster na parede, já todo amarelado. Era o poster que tinha um poema de Thiago de Mello. "Madrugada Sertaneja", leu emocionado um dos versos: "Faz escuro mas eu canto/porque a manhã vai chegar". Riu com lágrimas nos olhos, sabia que as ilusões da juvntude eram coisa do passado, mas permanecia com aquele "ranço", com a mesma esperança que era o seu sonho de homem acordado. Adormeceu e sonhou com uma sociedade nova sem explorados e nem exploradores.
Escrito por William Pôrto às 18h28
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